quarta-feira, 7 de julho de 2010

O crime do professor de matemática por Carlos Mendes de Sousa

No período de férias demos uma pausa na sequência de publicações acerca do livro Clarice na Cabeceira, da Editora Rocco.

Pois bem, estamos de volta, e dando andamento a nossa proposta inicial, trazemos a exposição de
Carlos Mendes Sousa, professor de literatura brasileira na Universidade do Minho, um dos principais nomes da mais nova geração da crítica literária portuguesa, sobretudo no âmbito da
poesia contemporânea. É autor de um livro de referência sobre Eugênio de Andrade (1992), organizou, com Eunice Ribeiro, uma Antologia da Poesia Experimental Portuguesa (2005) publicou ensaios fundamentais sobre Cesário Verde, Jorge de Sousa Braga, Fiama Hasse Pais Brandão, Luís Miguel Nava ou Eduardo Lourenço, muitos deles publicados na revista Relâmpago, de que é um dos directores. Na literatura brasileira dedicou-se por longo tempo a Clarice Lispector, daí tendo resultado uma obra maior na bibliografia sobre a autora, Clarice Lispector. Figura da Escrita (2000), obra com a qual conquistou o Grande Prêmio de Ensaio da APE. Para o Curso Breve de Literatura Brasileira, coleção dirigida por Abel Barros Baptista nos Livros Cotovia, posfaciou os volumes Laços de Família, de Clarice Lispector, e A Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto.


CONTO: O crime do professor de matemática
DO LIVRO: LAÇOS DE FAMÍLIA
APRESENTAÇÃO: Carlos Mendes de Sousa
“Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele
próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da
chapada, a encarar de olhos vazios o sol”

OS DOIS ANOS QUE ANTECEDERAM a minha entrada na Universidade, como estudante de um curso de Letras, foram para mim os tempos de leitura mais intensa e mais caótica de que tenho memória. Nesses anos, dirigia-me quase invariavelmente todas as tardes até um antigo edifício do século XVI e subia a uma sala, donde se podiam entrever os claustros manuelinos de um mosteiro, lugar especialmente inspirador para leituras silenciosas. Era aí, junto à igreja de Santa Cruz, em Coimbra, que na época funcionava a Biblioteca Municipal: era aí que eu permanecia tardes inteiras, imerso num mundo de jornais, revistas e livros. Depois ia para casa carregado de empréstimos de ficção e de poesia.



Contudo, não foi nesse tempo de intermináveis leituras desordenadas que me vieram ter às mãos as obras de Clarice Lispector. Mas foi quase logo a seguir. Descobri Clarice quando já freqüentava Faculdade de Letras de Coimbra, ainda que não tivesse estudado a sua obra na disciplina de Literatura Brasileira ou em qualquer outra cadeira. Foi no meu segundo ano da licenciatura, precisamente há trinta anos, que se deu a descoberta, na biblioteca do Instituto de Estudo Brasileiros. Este já era um tempo de leituras dirigidas, e andava eu a fazer pesquisas sobre Banguê, de José Lins do Rego, quando deparei com o nome Lispector nas estantes. Dois anos após a morte Clarice era ainda muito pouco conhecida em Portugal. Atraído pelo nome da escritora e pelo título do livro, requisitei A maçã no escuro. Que obra extraordinária! Tão diferente e difícil e desafiadora. Veio-me, então, de imediato, o desejo de ler tudo o que a autora escrevera.



Não consigo precisar por que ordem fui devorando os livros de Clarice, mas sei que entre os primeiros que li, numa iniciática fase de deslumbramento, se encontrava justamente Laços de Família, um dos mais belos volumes de contos da língua portuguesa.



Nas suas narrativas de longo fôlego é muito marcante a tensão entre a irrupção do fragmentário e os propósitos arquitetônicos de fechamento. Em A maçã no escuro encontramos largos painéis narrativos que delineiam quadros, como se tratasse de micronarrativas independentes. Nos textos breves, em concreto nos contos de Laços de Família, deparamos com um apuradíssimo equilíbrio de construção, mas também aqui, embora menos perceptíveis, ocorrem as mesmas tensões de toda a escrita clariciana, subsumidas na oscilação dialética entre o pendor formalizante, de que a estrutura de cada texto bem dá conta, e o desconcerto do imprevisível. Sob o traço polido da escrita, irrompem em todos os contos deste volume o sobressalto, a crispação, o assombro. A descida às galerias da alma ocorre nas mais vulgares situações do dia a dia. A existência turbulenta e selvagem, os purgatórios da paixão terreal, toda a dor e júbilo de ser e existir são interceptados no mínimo traço, no menor gesto: uma veia ou uma ruga anunciada no rosto intocado, um enterro ritualizado de um cão substituto, no conto que aqui apresento.



Os seres são confrontados consigo mesmo no meio de circunstâncias tão insignificantes, que as conseqüências, por contraste, revelam um lugar espantoso: a boca de um cego (“Amor”), boca escura a abrir e a fechar, avoluma-se e devém imagem obsessiva e perturbante; e esse cão desconhecido de “O crime do professor de matemática” torna-se, no enterro, o símbolo da própria irresolução agigantada – “algo realmente impune e para sempre”. Mansa e obscuramente ronda a ameaça: a todo o momento pode chegar a “crise”. Contudo, o perigo de dissolução a que se vêem expostas as personagens claricianas é, paradoxalmente, a mais funda energia desses seres. E não há apaziguamento possível porque não mais poderá segurar a vida, mesmo no interior das células protetoras do núcleo familiar. A este respeito é bem expressivo o desfecho dado ao professor de matemática: “E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio da sua família”.



Quando li este conto pensei logo no romance A maçã no escuro. Naturalmente que o mais imediato ponto de contato entre os dois textos decorre Fo fato de os protagonistas serem homens, um estatístico e um professor de matemática, isto num universo ficcional marcado pela predominância das personagens femininas. Muito mais haveria para dizer sobre aquilo que há de comum entre os textos e que não cabe nesta breve nota. Lembro apenas o significado simbólico do percurso de Martim em A maçã no escuro. A sua caminhada, feita de avanços e recuos, poderá ser perspectivada como ato penitencial pelo “crime” cometido. No final do percurso veremos o anti-herói que nasce das provas, no meio do que falha, do que é incompletude, tropeço. Afinal, não houve crime. Tudo é questionamento nesse processo em que o homem se reconstrói a partir da redescoberta da linguagem. No início de “O crime do professor de matemática”, o trajeto do homem suscita igualmente interpretações simbólicas. Antes de mais, o afastamento em relação à comunidade e a subida até ao ponto mais elevado da colina. Depois, o relevo concedido ao olhar e aos modos de ver, complementados pelo motivo da miopia (recorde-se o gesto repetido de pôr e tirar os óculos). Anuncia-se aqui uma operação que, em tudo, aponta para as conseqüências de uma visão de profundidade. O conto revela um dos eixos nucleares da obra de Clarice – a relação entre o humano e o animal – e confronta-nos com uma das mais violentas percepções subterrâneas deste universo literário: o território da culpa.



Estamos perante um texto que, envolvendo o maior disfarce, a partir da recorrente figura clariciana do professor, talvez seja um dos mais autobiográficos contos de Laços de Família. Mas como sempre acontece na obra da autora, essa dimensão é admiravelmente transcendida. Em 1946, Clarice publicara num jornal brasileiro um conto intitulado “O crime” (Letras e Artes, 25 de agosto). É a própria Clarice que associa o texto a um episódio de ordem biográfica: o abandono de um cão (Dilermando), quando, nesse ano de 1946, se muda de Nápoles para Berna. Disso mesmo deu conta nas cartas que escreveu às irmãs. A tentativa de recuperação da perda manifesta-se obstinadamente pela via literária: “Anos depois entendi que o conto simplesmente não fora escrito. Então escrevi-o. Permanece o entanto a impressão de que continua não escrito”. No final dos anos 1950, reescreve o conto, expandindo-o. A “impressão” a que a autora alude reenvia claramente para a culpa não resolvida, motor que ativará a compulsão em torno da escrita sobre o animal. Nos últimos tempos, outro cachorro entrará na vida de Clarice. Mas Ulisses como que entra pela porta da frente para tornar-se quase só linguagem (veremos essa manifestação em Um sopro de vida). O cão napolitano precisou de um duplo; e se o conto pode ser lido como um réquiem, também podemos lê-lo como uma das mais profundas reflexões sobre a questão da identidade.

Desde esse longínquo dia de 1979 em que casualmente me veio ter às mãos A maçã no escuro, que, de um modo ou de outro, não deixei de ter Clarice na cabeceira. Ao cabo de muitos anos, nunca me cansei de ler Clarice Lispector. E posso dizer que a sua obra continua a solicitar-me mais do que um mero impulso de revisitação. Ela continua a representar o próprio sentido inaugural da leitura. Isto é, leio sempre os seus textos como se os lesse pela primeira vez.

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