extraimos o seguinte trecho, do
CONTO: A menor mulher do mundo
DO LIVRO: LAÇOS DE FAMÍLIA
APRESENTAÇÃO: Luis Fernando Verissimo
“Foi, pois, assim que o explorador descobriu, toda em pé e a seus pés, a coisa humana menor que existe. Seu coração bateu porque esmeralda nenhuma é tão rara. Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros. Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça. Ali estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar. Foi então que o explorador disse, timidamente e com uma delicadeza de sentimentos de que
sua esposa jamais o julgaria:
— Você é Pequena Flor.”
O grande escritor brasileiro conhecido por suas crônicas e textos de humor, publicados diariamente em vários jornais brasileiros, Luis Fernando Verissimo, se manifesta sobre Clarice da seguinte forma,
EM 1953 MEU PAI FOI CONVIDADO a dirigir o Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos. Fomos para Washington, uma aborrecida cidade burocrática, no começa da era Eisenhower. O diplomata Maury Gurgel Valente e sua mulher Clarice estavam lá com os dois filhos, Pedro e Paulo, e foram os primeiros brasileiros a dar boas-vindas aos recém-chegados. Eles seriam os melhores amigos dos meus pais nos quatro anos em que ficamos em Washington. Clarice e minha mãe, que não poderiam ter personalidades mais diferentes, tornaram-se amigas de infância. E sem que houvesse qualquer cerimônia, meus pais foram designados padrinhos extraoficiais do filho mais moço dos Valente, o Paulo. (Uma vez fui levar Clarice e os dois meninos em casa de carro e na chegada o Paulinho perguntou: “Não quer entrar e tomar um cafezinho?” Grande surpresa. Ele mal começara a falar, era provavelmente a primeira frase inteira que dizia.) Várias fotografias da Clarice, inclusive algumas que têm saído na imprensa, foram tiradas pelo meu pai durante o convívio dos dois casais naqueles anos americanos. Também houve uma designação extraoficial do meu pai como fotógrafo exclusivo da Clarice.
Eu tinha 16 anos quando chegamos a Washington e a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo: fascinação. Com a sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, e erre carregado que fava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo com seu humor e seu jeito de garotona ainda desacostumada com o tamanho do próprio corpo. O fato de que aquela Clarice era a Clarice Lispector não dizia muito. Eu sabia que era uma escritora meio complicada, nunca tinha lido nada dela. Só quando voltamos ao Brasil li O lustre, Perto do coração selvagem e, depois, os contos, extraordinários. “A legião estrangeira”, “Amor”, “Uma galinha”, “Macacos”, “Laços de família”, “Festa de Aniversário” e tantos outros, e o melhor conto que conheço em língua portuguesa, “A menor mulher do mundo”.
Em 1962 saí de Porto Alegre e fui morar com minha tia, no Rio. A Clarice, que então já estava separada do Maury, era nossa vizinha no Leme e pude conviver, e me fascinar, um pouco mais com ela.
Anos mais tarde, folheando alguns livros da Clarice, dei com uma dedicatória dela em A maça no escuro, para “meus queridos Erico e Mafalda”. Uma dedicatória brincalhona, datada de julho de 1961, em que ela destaca que o preço do livro nas livrarias é de 980 cruzeiros e que portanto está lhes dando um presente valiosíssimo, e recomenda que ele seja protegido com uma capa colante, do tipo que gruda na mão e “prende” o leitor. No fim há um adendo que eu ainda não tinha visto: “Luis Fernando, considere este livro seu também, por favor. Divida 980 por três e você terá preciosa parte. Sua Clarice”. A lembrança de Clarice vale bem mais do que 980 cruzeiros. Mesmo com todas as correções monetárias acumuladas em 47 anos.
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